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Pedro Casaldáliga, discípulo de um prisioneiro político. Por Ana Helena Tavares

Palestra de Ana Helena Tavares* em mesa redonda virtual de abertura da 1ª Semana Casaldáliga promovida pela congregação dos claretianos


“A política transporta positividade e com positividade deve ser exercida. Da poesia para o filósofo, do filósofo para o povo. Do povo para o homem do povo”


Essas palavras foram ditas anos atrás durante a entrega de um título de doutor honoris causa a Lula, na universidade de Coimbra, Portugal. Mas poderiam perfeitamente ter sido ditas a Pedro.


Pedro foi exatamente um homem do povo e o tipo de política que exerceu, mesmo que não em cargo público, foi sempre em benefício do povo, com positividade, poesia e em prol da vida. Todas as vidas.


Optei por começar essa explanação citando uma frase dita ao Lula, que poderia ter sido dita ao Pedro, mas obviamente se tratam de figuras muitíssimo diferentes. Não vou me aprofundar nessas diferenças. Vou apenas citar uma história que está no livro “A terra e as cinzas – Viagem ao país de Lula, Bolsonaro e Casaldáliga”, escrito pelo meu amigo Paco, Francesc Escribano, primeiro biógrafo do Pedro.


O livro conta que Lula, no primeiro mandato, ofereceu a Pedro a cidadania brasileira. Pedro, então, teria respondido que aceitaria de bom grado no dia em que Lula fizesse a Reforma Agrária. Como sabemos, até hoje, essa reforma não foi feita no Brasil.


De quem é a culpa por isso não me cabe discutir aqui no meu curto tempo. O que quero é lembrar que Pedro, desde que chegou ao Brasil, usou de sua voz e de todas as ferramentas políticas de que dispunha para denunciar o latifúndio e gritar pela reforma agrária.


Nesse sentido, sua carta pastoral, lançada em 1971 – “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social” – é um programa político de seu episcopado, onde ele deixa clara sua defesa da vida, contra todo tipo de escravidão, de exploração e, especialmente, contra a imoralidade do sistema capitalista.


Aqui vale dizer que se hoje assistimos queimadas no Brasil, especialmente em São Paulo, patrocinadas pelo agronegócios, houve bispos católicos, entre eles Pedro, que já denunciavam problemas semelhantes desde o início dos anos 70.


É interessante também que a própria forma como Pedro resolveu ser sagrado bispo deixou bem clara sua visão política. O báculo era um remo indígena, a mitra um chapéu de palha, a estola um pano simples e, em vez de um anel de ouro, um anel de madeira, o anel de tucum.


Bispo Pedro à beira do rio Araguaia


A Comissão Pastoral da Terra, que Pedro ajudou a fundar, é um exemplo de entidade que até hoje segue levando adiante esse programa político expresso naquela carta e nessa foto.


Além da questão da luta pela terra, Pedro também atuou politicamente em muitas outras frentes relacionadas à defesa da vida e dos direitos humanos. Uma das principais foi, sem dúvida, a causa indígena. E hoje temos a atuação sempre firme do Conselho Indigenista Missionário, o CIMI, que também traz as digitais do Pedro.


E quem se dispor a ler a nossa Carta Magna, a Constituição Federal de 1988, vai encontrar Pedro lá. Não o nome dele, claro, mas o seu legado, e o de muitos como ele que contribuíram de forma decisiva para que os direitos dos povos indígenas estivessem lá registrados, ainda que tantos juristas pareçam não ter lido.


E a democracia, reconquistada na década de 80 pelo Brasil, é um modelo de governo que Pedro sempre aplicou na prática na Prelazia de São Félix. Cada cidade da região contava com conselhos dos quais participavam representantes do povo. O povo era sempre consultado. Havia reuniões frequentes com os agentes pastorais e tudo era decidido coletivamente. Mesmo que Pedro não concordasse, ele acatava a decisão da maioria. Além disso, havia igualdade salarial entre os agentes pastorais e, com frequência, Pedro ia à rádio fazer prestação de contas das ações da Prelazia.


Tudo isso que citei aqui até agora, pode se definir assim: Pedro atuava com transparência, não fazia diferenciação entre as pessoas, era coerente com as ações na macro e na micropolítica, e agia sempre em prol dos necessitados. Ele sentia as dores do povo e ia até as “periferias existenciais e geográficas”, como hoje o Papa Francisco tanto pede. Isso nada mais é do que ser cristão.


Quando o papa fala de “periferias geográficas” está se referindo às regiões mais pobres do mundo. Pedro atuou em uma delas, Guiné Equatorial, antes de vir para o Brasil. Também lá, fez política. Especialmente de combate ao racismo e a todo tipo de segregação.

 

Conto no meu livro “Um bispo contra todas as cercas”, no capítulo “Morte e vida africana”, que ele e seus companheiros estavam na África, no início dos anos 60, por conta dos chamados Cursilhos de Cristandade.


Com a mistura das esperanças e dos sonhos, eles revolucionaram as práticas comuns a esse tipo de missão ao ministrarem cursilhos que misturavam brancos e negros.


Enfrentaram a descrença de muitos, que julgavam que não daria certo, e negaram-se a ceder aos que queriam a segregação. Tinham como palavra de ordem: “Ou café com leite ou nada!”.


Assim, acabaram por fazer uma mistura ainda mais ampla, que não se restringia a brancos e negros. Civis e militares; pessoas letradas e gente quase analfabeta; carolas e devassos; todos foram reunidos naqueles cursilhos.


Mesmo depois de já estar no Brasil há muito tempo, já nas décadas de 80 e 90, a atuação de Pedro teve uma forte dimensão internacional, sempre coerente com suas práticas locais. Foi nos anos 80 que visitou a Nicaragua e Cuba. Na Nicaragua, ofereceu forte apoio à revolução sandinista.

 

Pedro acreditava na máxima de que “se queres a paz, faze guerra à guerra, faze a paz”. Era um bispo contra todas as cercas, como deixou registrado no seu poema “Tierra nuestra Libertad” (Terra nossa liberdade), que eu tô aqui agasalhada com ele (MOSTRAR) e que foi recitado numa novela da Globo recentemente.

 

Mas, além de contra todas as cercas, também, claro, todos os muros e contra todas as fronteiras. Jesus foi um migrante, Pedro também,

 

Estou dizendo isso para lembrar a defesa política que Pedro sempre fez da causa dos refugiados. Uma das muitas ocasiões em que atuou nessa causa foi em 2007, quando o bispo pediu ao deputado estadual por Minas Gerais Durval Ângelo que, através da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas, refugiados da bacia do rio Cacarica, na Colômbia, recebessem abrigo.

 

Durval disse a Pedro: “Mas nós não temos estrutura para isso”. No que Pedro insistiu para que aqueles refugiados recebessem ao menos alguma assistência. Assim foi feito e, depois disso, a Comissão de Direitos Humanos da ALMG passou a receber outros refugiados também.


Não resta dúvidas. Pedro Casaldáliga fez política. A opção pelos pobres é política. A opção pelos nobres também.


Existe a política do tubarão. Existe a política do peixe pequeno. Ou, como diria Pedro, numa pequena e irônica cantiga:

Pescador

tem sua política:

a vara e a isca.

O peixe

tem sua boca...

para cuspi-la.

(CASALDÁLIGA, 1979, PÁG. 58)


É delicada a relação entre religião e política, mas a Igreja Católica sempre a fez. Não à toa o Papa é um chefe de estado, coisa que, aliás, Pedro discordava.


Pelo lado da defesa da vida, é interessante lembrar que muitos religiosos católicos participaram ativamente da fundação de instituições políticas que foram criadas no contexto da redemocratização, no início dos anos 80. MST, PT e CUT.


Foi nessa época do início dos anos 80 que Pedro e outros bispos de uma geração iluminada, integrantes da chamada ala progressista da Igreja, fizeram duas missas altamente subversivas – a missa dos quilombos e a missa da terra sem males – nas quais enquanto membros da Igreja Católica tomaram a posição política de pedir desculpas ao povo negro pela escravidão e também aos indígenas pela opressão.


Outras igrejas também sempre fizeram política, para o bem e para o mal. O que invariavelmente ocorre é que religiosos que fazem a opção dos zapatistas – “sempre abaixo e à esquerda” – são perseguidos enquanto os que se aliam aos poderosos não são incomodados. Mas política todos fazemos. Como diz a frase que Pedro tanto gostava e que tinha pendurada em seu armário: “Tudo é política, embora a política não seja tudo”.


É bem verdade que hoje parecemos ter uma ausência ou silenciamento de vozes proféticas como a de Pedro. Podemos citar o Padre Júlio, uma das exceções que confirmam a regra, que hoje tem uma atuação política importante junto aos moradores de rua de São Paulo e ganhou projeção nacional. Cito também o Frei José Fernandes, frade dominicano de Goiânia, que tem atuação em diversas entidades e, como Pedro, faz política em defesa da vida, sempre ao lado dos mais pobres, e acreditando que a paz nasce da justiça.


Frei José participa, através da Comissão Dominicana de Justiça e Paz, do Projeto Encantar a Política, que envolve diversas entidades ligadas à Igreja Católica e tem por missão conscientizar eleitores para elegerem pessoas compromissadas com a vida, tanto com a vida humana quanto com a Mãe Terra, a Casa Comum, e com a redução das desigualdades sociais. Pedro também trabalhou muito com esse tipo de conscientização voltada para as eleições. Publicando diversas vezes no jornal Alvorada, por exemplo, que era o jornal da prelazia, cartilhas com orientações eleitorais.


E, para encerrar essa explanação, quero falar rapidamente sobre a Agenda Latino-Americana, um legado político-pedagógico deixado pelo Pedro. Para quem não conhece, é um livro-agenda. Esta é a edição desse ano. Todo ano tem um tema. O desse ano é Decolonizar o mundo e a vida – Missão libertadora. A edição de 2025, que será lançada em setembro, falará de Juventudes e cultura de paz. Esse livro-agenda foi lançado em 1992 pelo Pedro Casaldáliga e por José Maria Vigil.


Na época, completavam-se 500 anos do malfadado descobrimento da América, que na verdade foi invasão. E o principal legado político que Pedro deixa através desse livro-agenda é justamente a inversão da ótica da colonização. É pensarmos o mundo pela ótica daqueles que sempre foram historicamente explorados e compreender que eles são agentes de sua própria história.


Atualmente, esse livro-agenda é editado pela Comissão Dominicana de Justiça e Paz. Qualquer pessoa que queira conhecer a política na qual o Pedro acreditava vai encontrar ela aqui. Inclusive, diariamente cada página traz a memória de pessoas que foram martirizadas naquele dia exatamente por lutarem pelo tipo de política que Pedro acreditava. Citar o de hoje.


Concluindo, lembro o que sempre diz Frei Betto, que completou 80 anos ontem. “Sou discípulo de um prisioneiro político. Jesus não morreu de doença na cama nem atropelado por um camelo numa viela de Jerusalém. Morreu na cruz condenado por poderes políticos”. Então, é isso. Pedro Casaldáliga também era discípulo de um prisioneiro político. Peçamos a Deus que todos nós cristãos consigamos ser.


*Ana Helena Tavares é jornalista, ex-diretora da ABI, biógrafa de Pedro Casaldáliga, autora do livro "Um bispo contra todas as cercas - A vida e as causas de Pedro Casaldáliga" (Vozes, 2019).

 

 

 


 

 

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